quarta-feira, 30 de abril de 2008

O vermelho e o negro

É nesta Loja que fica o Maio de 1968.

Na memória de quem vivia em 1968, com 12 anos apenas, como era o país Portugal e a França, para onde emigravam os portugueses de então?

É esse o objectivo desta escrita, em memórias já refeitas pelo tempo e condicionadas pela leitura de outros que aí viveram, escreveram e sentiram o ar do tempo de então.

A tarefa será virtualmente impossível, para repor a integralidade do caleidoscópico da vida. Na melhor hipótese, de objectivo alcançável, ficará apenas um apanhado de impressões e imagens que valem palavras. Algumas mais de mil; outras, sem palavras sequer.

Que contexto cultural tínhamos em Portugal, nesse ano?

Censura prévia, de escritos variados. Não era possível, em Portugal, relatar os acontecimentos de Maio de 1968, seguindo o guião dos intelectuais franceses que na altura influenciavam o mundo português, da intelectualidade bem-pensante que se opunha ao regime e até a que lhe era indiferente.

Desde o início que o Maio de 68 se pode identificar ideologicamente com duas ideias básicas: a do marxismo, nas suas variantes e a da anarquia, na sua essência.

Em Maio de 1968, um dos principais mentores da revolta estudantil em França, Daniel Cohn Bendit, saído dos teen, declarava-se abertamente anarquista, por influência do seu irmão mais velho, Gaby, na altura com 32 anos e professor no Liceu Saint Lazare.

Numa entrevista à revista Magazine Littéraire, nº 19, de Julho de 1968, precisamente dedicada ao anarquismo ( de onde vêm? Quem são? O que querem?) Gaby Cohn-Bendit, alarga-se em considerações fantásticas, sobre a ideologia anarquista e a “traição” do partido comunista. Cita os grandes temas do anarquismo, até então, aparentemente morto em França e afinal ressuscitado pelo movimento de Maio, com bandeiras negras, à mostra nas manifestações.















O- Os temas elencados por Gaby, na entrevista, na sequência dos acontecimentos de Maio, são interessantes:

. - A espontaneidade das massas, como evidência, demonstrada pelo facto de as manifestações no Boulevard Saint-Michel, integrarem espontâneos, aos milhares, com bandeiras de quase todas as cores, com predomínio do vermelho e negro.

2.- - O papel das minorias, à margem do jacobinismo ou do leninismo, que são exemplos de minorias organizadas para a tomada do poder. Relevo do verdadeiro papel das minorias que suscitam a atenção das massas maioritárias, para os problemas comuns.

3. -A greve geral, sem limite temporal, contra as correntes sindicais que a apontavam como utópica e irrealista.

4. -A auto-gestão, como modelo utópico de organização produtiva.

5.--As eleições, como fraude democrática e afinal, modo simples de manutenção da ordem ( uma das palavras de ordem escritas nos muros, era "votar, é abdicar" e principalmente "elections, piège à cons"...).

Gaby, perguntado sobre as “leituras” que o levaram à opção ideológica, tem poucas referências, mas de vulto:

Voline e A Revolução Desconhecida; um pouco de Bakunine e um pouco de Kropotkine; antologias de textos anarquistas, por Daniel Guérin e referências esparsas a outros textos de Bakunine, explicativos da revolução russa.

Entre as referências revolucionárias, contava a da Comuna de Paris, a revolução russa, no começo, o anarquismo ucraniano e a Espanha de 1936. Da guerra civil, portanto.

O próprio Edgar Morin, sociólogo, no mesmo número da revista, apresentava as suas conclusões sobre a revolta estudantil de Maio de 68, em França: “ é um renascimento e uma ressurreição do anarquismo”. E passava a explicar a sua visão particular do fenómeno de Maio, nesse mesmo ano de 1968.

A par de um recuo da influência comunista, por causa das revelações do relatório Kroutschev, sobre Estaline, dos acontecimentos na Hungria, o comunismo aparecia cada vez mais como uma burocracia, um poder anónimo e alienante do indivíduo, com um partido cada vez mais afastado do combate revolucionário.

O declínio da força comunista tradicional e a busca de outra coisa, mais radical, não apenas em teoria mas na própria forma de viver, favoreceram o aparecimento do neo-anarquismo, uma espécie de socialismo libertário.

No entanto, quem se manifestava nas residências estudantis, nessa época, eram outros grupos de estudantes. Trotskistas, maoistas e esquerdistas que lançavam os grandes anátemas sobre o Vietnam, Cuba e o Che. Os anarquistas, estavam adormecidos e despertaram com as manifestações.

O neo-anarquismo, segundo Morin, devia mais a Marx, do que o original, do início do século e que por cá, em Portugal, culminou com o regicídio.

Bakunine que admirava Marx, não via correspondência neste. Porém, Lenine, considerava os anarquistas como irmãos, porque o Estado era o inimigo. Lenine, aliás, só o sustentava durante um período transitório- o estritamente necessário à transição para a sociedade comunista e de abundância para todos.

Tal como os anarquistas, Lenine pretendia efectivamente, a supressão do Estado. Logo, a empatia fraternal era imediata e reconhecida, o que se denota no livro de Lenine, O Estado e a Revolução.

Esta proximidade ideológica, em França, vinha de longe. De facto, vinha da Comuna de Paris e vinha de Espanha, do tempo da guerra civil. E vinha também da Catalunha ou Aragão, em que os camponeses, começaram por transformar as igrejas em lugar de reunião , queimaram as notas de banco, por decidirem suprimir o dinheiro como instrumento de trocas, trocando-o pela vontade de tudo partilharem em comum.

Este tipo de discussão, aberta e com citação de nomes, autores, correntes, mesmo a própria palavra comunismo, era simplesmente impensável, no Portugal de Maio de 1968. Prestes a entrar na Primavera marcelista, ainda estava mergulhado nas trevas densas da Censura salazarista que tutelava a expressão pública das ideias e restringia a publicação das mesmas em suporte de papel, dentro de certos parâmetros discricionários e conhecidos dos censores do regime.

Quem lê, mesmo agora, as publicações francesas da época, depara com a riqueza de análise, livre e sem peias ideológicas, das ideias e acontecimentos, próprias de uma democracia sem restrições censórias inadmissíveis. Por cá, não havia paralelo, por medo do comunismo. E no entanto...

Talvez por isso mesmo, o partido comunista francês, pouco teve a ver com o movimento de Maio, em 1968, em França. Já nessa altura, o vento não corria de feição, porque a liberdade de circulação de ideias e opiniões, matou as veleidades do mito. Enquanto por lá morria, por cá, surgiu em toda a força, em Abril de 1974, com os estragos que se fizeram sentir durante décadas.

Alguns comunistas dissidentes, porém, organizaram-se nessa altura em movimentos de massa, em França. Alguns deles de pendor trotskista, uma corrente com grandes simpatias por terras de França.

A Juventude Comunista Revolucionária, de Alain Krivine e Henri Weber ( que em 1988, publicou um livro intitulado Faut-il liquider Mai 68? e este ano republicou-o com um “avant-propos”, para a efeméride e para criticar Sarkozy que declaradamente se propôs liquidar totalmente a herança de Maio de 68) , foi outro desses movimentos do mês de Maio e que se desfez em Junho, depois da prisão de alguns dirigentes e dissensões internas. Tinha como guru, Ernest Mandel, autor de um “Tratado de Economia Marxista”, ainda recomendado como leitura, na Faculdade de Direito de Coimbra, em 1976...

Em França, numa carta publicada no Le Monde da época, um comunista dizia que um certo número de camaradas tinha comparecido às manifestações estudantis e operárias, mas de um modo então incompreensível, por cá: “ os comunistas compareceram, mas o partido não.

Por causa disso, os nomes dos reaccionários, em França, nessa altura, declinavam-se como Marchais, Aragon e outros. Podia perfeitamente juntar-se aos mesmos, Álvaro Cunhal. Mas esse nome, era proibido de publicação em jornais portugueses.













O salazarismo do Estado Novo, situava-se nos antípodas dessas ideias e combatia-as de modo eficaz, no que se refere à possibilidade de expressão pública das mesmas, através da Censura rigorosa de tudo o que se lhe referia directamente.

Mas, paradoxalmente, a proibição da discussão pública dessas ideias, sustentou a mitologia comunista, para além da realidade dos tempos. A discussão ideológica que ocorreu em França, logo que surgiram os problemas que mataram a influência do partido comunista, por cá, foi abafada e o resultado, foi funesto.

Em Abril de 1974, na sequência da Revolução dos Cravos, uma visita a instalações da Escola Técnica da DGS ( antiga PIDE), permitia descobrir um museu dessa Escola Técnica. Entre outras coisas, uma foto publicada na revista Flama, de 10.5.1974, permitia apreciar várias fotos sobre "os conflitos estudantos de 1968 em França". Tal como se pode ver, abaixo:




(Continua)