segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O MP é um órgão judicial?

Retirado daqui, fica outro excerto sobre a natureza do Ministério Público português, num momento em que se discute em blogs, como o In Verbis, o poder judicial,visto, maioritariamente, pelos juízes.
A noção que se obtém das leituras de certas intervenções de juízes é a de uma patente hostilidade, acompanhada de algumas aleivosias, para com a magistratura do MP e uma reivindicação de exclusividade de pertença ao poder judicial, confundido em pleno com o exercício jurisdicional, para afastamento dos "rivais".

Nem pelo facto de a Constituição inserir no Título V, relativo aos tribunais, os artigos sobre os estatutos dos juízes e também os do ministério público, isso serve para desarmar os argumentos, dos secessionistas do exclusivo poder judicial.

As razões para que tal não seja assim, podem ler-se com os seguintes argumentos:

O Ministério Público é o órgão do Estado encarregado de representar o Estado, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar (artigo 1º da Lei Orgânica do Ministério Público).

Em Portugal, o Ministério Público caracteriza-se pelo seu poliformismo essencial.

As atribuições do Ministério Público distribuem-se por diversos planos, em que se inclui o exercício da acção penal, compreendendo a direcção da investigação criminal, a promoção da legalidade, a representação do Estado, de incapazes e de incertos e o exercício de funções consultivas.

A estes sinais identificadores, junta-se o da sua unidade organizativa. Salvo os tribunais militares, o Ministério Público está estruturado uniformemente em todas as jurisdições.

A história da instituição evidencia que se trata de um modelo com raízes muito antigas, cuja evolução se realizou principalmente segundo as exigências da justiça e da administração do país.

O Ministério Público goza, hoje, de autonomia orgânica e funcional, estando excluída a interferência de outros poderes na sua acção concreta, exceptuados os casos em que actua como advogado do Estado, isto é, quando defende e sustenta interesses privados ou específicos do Estado.

O problema da natureza do Ministério Público tem sido principalmente elaborado a partir das suas atribuições no processo penal.

São estas atribuições que lhe conferem um estatuto de poder, já pelas faculdades e iniciativas de coerção que lhes são próprias, já pelas características processualmente cominatórias do acto de acusação. Foram também elas que o deslocaram para áreas próximas de um dos clássicos poderes do Estado - o executivo - a cuja tutela pertence a segurança e a ordem pública.

Mas daqui se vê que não é possível falar da natureza do Ministério Público sem abordar, ainda que perfunctoriamente, a questão do seu lugar constitucional.

Historicamente, as razões expendidas a favor da dependência governamental do Ministério Público radicaram em dois principais argumentos: o de o Ministério Público assumir o papel de parte na estrutura dialéctica da decisão e de ser necessário garantir um equilíbrio que ficaria em causa se lhe fosse atribuída autonomia; e o de uma eventual autonomia poder tornar o governo "perigosamente irresponsável" perante a nação num domínio tão importante como é o da política criminal.

Descobre-se, neste enunciado, uma argumentação que aceita, como pressuposto, a qualificação do Ministério Público como parte para, depois, se perturbar perante a dificuldade da sua inserção em um dos dois poderes do Estado referenciáveis - o executivo e o judicial. E como a integração no poder judicial de uma parte representaria uma contradição nos termos, a resposta torna-se aparentemente fácil.

No plano da responsabilidade política, os argumentos são também histórica e geograficamente referenciados.

As interferências políticas nos processos criminais eram fáceis no tempo em que o poder se organizava de uma forma homogénea e a pluralidade social era lábil. Então, era possível preparar intervenções no segredo dos gabinetes, fazê-las aceitar pelas vários escalões de uma hierarquia e manter tudo no desconhecimento do cidadão comum.

Mas a realização da política criminal através do processo tornar-se-á cada vez mais delicada numa época dominada pelo mito da transparência, cujos reflexos estão constantemente presentes nos jogos de poder e na formação da opinião pública.

De resto, o espaço exposto àquelas interferências nunca foi grande nos sistemas que preconizam o exercício obrigatório da acção penal. Contrariamente ao princípio de oportunidade, que possibilita uma selecção de casos e o estabelecimento de prioridades, o princípio de legalidade deixa ao Ministério Público uma margem muito reduzida de discricionariedade.

O problema da natureza do Ministério Público está, hoje, por estes motivos, mais descomprometido com razões que são, na sua rigorosa acepção política, de Estado.

Elaborada numa época em que já se estava longe de uma concepção rígida da organização do Estado, a Constituição da República estabelece um princípio de separação e interdependência de poderes e define o Ministério Público como órgão integrado nos tribunais e dotado de autonomia e estatuto próprio.

Este estatuto tem de obedecer ao programa fixado pela própria Constituição, em que se inscreve o facto de a Procuradoria-Geral da República - e não o Governo - ser o órgão superior do Ministério Público.

Está-se, pois, perante um regime que exclui a dependência governamental e rejeita, de igual modo, o paradigma que dominava as representações tradicionais sobre a posição do Ministério Público.

Um órgão autónomo, constitucionalmente sistematizado no título relativo aos tribunais, com regras de organização, estatuto e funcionamento fundados em princípios que caracterizam uma magistratura, prosseguindo fins que condicionam a intervenção jurisdicional ou visam conformá-la com os níveis de normatividade a que está sujeita, não pode deixar de ser um órgão do poder judicial.

Mas, com isto, não se esgota a questão.

Organizando-se formalmente o Ministério Público como instituição judiciária e constitucionalmente integrada nos tribunais, não ficam, mesmo assim, resolvidas todas as questões de qualificação que as suas atribuições podem justificar.

Com efeito, a própria Constituição admite (artigo 219º ) que, juntamente com as competências que lhe são concretamente cometidas, pode o Ministério Público ser incumbido da defesa de outros interesses determinados por lei.

É certo que a circunstância de o Ministério Público estar organicamente integrado nos tribunais e o quadro de competências que a Constituição expressamente enuncia parecem impor que aqueles interesses devam possuir uma relação de afinidade com o enquadramento e os fins institucionais do Ministério Público. Não seria, porventura, constitucional que a lei cometesse ao Ministério Público uma função puramente administrativa que nada tivesse a ver com a lei e a administração da justiça.

Mas a plasticidade daquele princípios é manifesta e deixa em aberto a possibilidade do alargamento de atribuições do Ministério Público que, já hoje, ultrapassa o núcleo de funções que são exercidas perante as jurisdições.

Nesta conformidade, parece oferecer-se à partida como desnecessária e estéril qualquer argumentação que pretendesse demonstrar a natureza jurisdicional das funções exercidas pelo Ministério Público.

Na acepção técnico-jurídica de jurisdição, isto é, como actividade que define, com força de caso julgado, o direito aplicável ao caso, o Ministério Público não é um órgão jurisdicional.

Mas são judiciais as suas atribuições. Isto é, realizam-se segundo princípios, fins, objecto, organização e estatuto próprios do poder judicial.

A esta construção, recolhida pelo legislador constitucional, não foi certamente estranha a circunstância de as atribuições do Ministério Público se concretizarem, por um lado, numa função de iniciativa condicionante da intervenção dos tribunais em áreas importantes de afirmação da soberania e de manutenção do Estado de direito, e, por outro, constituírem um instrumento de auto-limitação do poder judicial essencial num Estado fundado na legalidade.

Verifica-se, por outro lado, existir uma recíproca influência entre as aquisições de índole constitucional e as que foram sendo adoptadas no processo penal.

Já anteriormente a estas reformas se podia entender, com Figueiredo Dias, que "a posição do Ministério Público no processo penal se define em concordância com os princípios aplicáveis no domínio da administração da justiça; trata-se de um órgão autónomo desta administração - autónomo, no sentido de independente dos tribunais, embora com eles material e funcionalmente conexionado, e dotado de uma estrutura e organização próprias - cuja actividade se não deixa reconduzir exactamente nem à "função executiva comum" nem à "função judicial".

O Ministério Público está hoje organizado como uma magistratura processualmente autónoma em dois sentidos: no da não ingerência do poder político no exercício concreto da acção penal e na concepção do Ministério Público como magistratura própria, orientada por um princípio da separação e paralelismo relativamente à judicatura.

Esta concepção é reafirmada em vários passos pelo Código de Processo Penal: ao elaborar o princípio de objectividade (artigo 53º), na aplicação aos magistrados do Ministério Público das disposições relativas a impedimentos, recusas e escusas do juiz (artigo 54º), na obrigação do Ministério Público investigar à charge e à décharge (artigo 262º), na exclusão do Ministério Público das regras sobre conduta de advogados e defensores (artigo 326º) e no reconhecimento de legitimidade para recorrer no exclusivo interesse do arguido (artigo 401º).

Encontrado o conceito de órgão de justiça como aquele que melhor exprime a posição do Ministério Público no processo penal e também a sua natureza, ficam por equacionar os problemas de qualificação que resultam de outras atribuições que, não sendo tão determinantes, têm, pela sua variedade e amplitude, um potencial considerável de identificação.

Se percorrermos estas atribuições, acabaremos por concluir que todas se reconduzem à realização da justiça ou à promoção e defesa da legalidade e, em qualquer caso, através de uma forma vinculada e sujeita a regras estritas de estatuto.

É certo que a configuração interna da actividade que concretiza aquelas atribuições é materialmente administrativa, se, por oposição, assim devermos classificar uma actividade que não visa a declaração do direito ao caso.

Mas não é isto o fundamental para determinar ou excluir a natureza judicial de uma actividade.

Se despojarmos a actividade dos tribunais da sua intencionalidade final, observamos que ela tem um conteúdo e uma ordenação essencialmente administrativos, não se distinguindo, na maioria dos actos e das fórmulas, da que é realizada pelo Ministério Público. E, de resto, em determinados casos nem sequer pode afirmar-se que a actividade dos tribunais tem por finalidade a declaração do direito.

O que é decisivo na actividade dos tribunal e na actividade do Ministério Público é o plano de actuação e os fins a que uma e outra estão pré-ordenadas e se dirigem.

Ora, tanto o plano como os fins de uma e outra actividade são intrinsecamente judiciais, porque, estando sujeitos a um estatuto definido para o poder judicial, operam (melhor, cooperam), numa relação de necessidade, com a realização última das atribuições dos tribunais.

Concluiremos, assim, no sentido de que o Ministério Público é um órgão judicial, integrado, com autonomia, no poder judicial, embora dotado de atribuições que não são materialmente jurisdicionais nem se confinam às exercidas pelos tribunais.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Para compreender melhor o MP português

Do sítio da PGR, respigam-se estes elementos de esclarecimento:
Emblematicamente, a magistratura do Ministério Público define-se por três grandes princípios: o da responsabilidade, o da hierarquia e o da estabilidade.
A responsabilidade "consiste em os magistrados do Ministério Público responderem, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela observância das directivas, ordens e instruções que receberem".
Contrariamente ao que, por vezes, aparece referido, a responsabilidade não corresponde a uma diferença específica entre a função do juiz e a do Ministério Público, havendo situações históricas (a certa altura, a legislação nacional foi exemplo disso) e sistemas de direito comparado (casos, nomeadamente, da Espanha e da Itália) em que o juiz está igualmente sujeito ao princípio da responsabilidade.
O que é então, a autonomia do MP?
É a vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e instruções" previstas na Lei Orgância do MP.
Por outro lado, se os juízes têm de ser independentes e imparciais, os magistrados do MP, serão isentos e objectivos.
A isenção traduz-se no dever de os magistrados do MP, promoverem e decidirem segundo uma ética de procedimento enformada pela lei e pelas normas profissionais que dela decorrem.
A objectividade traduz-se na obrigação de actuar sem uma perspectiva unilateral dos factos e do direito, devendo adoptar posições representativas da realidade que podem chegar ao ponto de alegar em benefício da defesa e investigar à charge e à décharge.
A hierarquia do MP, ao contrário do que alguns pretendem, não tem um significado de subordinação total e absoluta. Tem um sentido preciso ligado a necessidades impostas pela natureza das funções e por um objectivo de democratização da administração da justiça.
Exercendo funções de iniciativa e acção que, até por razões de celeridade, reclamam uma actuação unipessoal (os órgãos colegiais estão sujeitos a um processo mais moroso de formação da vontade), é necessário que haja mecanismos que, de forma preventiva ou a posteriori, acautelem a dispersão de procedimentos.
Por outro lado, é especialmente por intermédio do Ministério Público que se asseguram as finalidades de uniformização da jurisprudência e de igualdade dos cidadãos perante a lei e a justiça. Por via dos recursos (particularmente dos recursos para uniformizar jurisprudência e de constitucionalidade), o Ministério Público potencia a unidade do direito e a igualdade dos que recorrem aos tribunais.
Cabendo ao Ministério Público amplos poderes de iniciativa que cobrem praticamente todas as áreas da vida em sociedade, a ausência de hierarquia poderia significar a multiplicação de entendimentos e a colocação dos cidadãos numa situação de verdadeira desigualdade.
A hierarquia permite evitar ou resolver a fragmentação de procedimentos ou de correntes doutrinais no interior do Ministério Público e, ao uniformizar as iniciativas desta magistratura, previne e remedeia a divisão da jurisprudência.

Outra característica estrutural da magistratura do Ministério Público é a sua unidade e indivisibilidade. Tal significa que todos os magistrados que fazem parte da mesma comarca, departamento ou serviço têm igual competência para exercer funções que estejam cometidas a esse escalão hierárquico.
É este o sentido da hierarquia e não aquele que Vital Moreira, e outros, ardilosamente, lhe pretendem conferir.
Além disso, o MP beneficia também de um princípio da estabilidade. Tal significa que os magistrados do Ministério Público não podem ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados, demitidos ou, por qualquer forma, mudados de situação senão nos casos previstos naquela lei.
Esta garantia, consignada em favor dos magistrados do Ministério Público, e para benefício da isenção e objectividade que só podem garantir melhor os direitos dos cidadãos, tem um conteúdo semelhante à inamovibilidade reconhecida aos juízes. Aliás, são os próprios Gomes Canotilho e Vital Moreira, quem ensinam que a referida garantia constitui não só uma reserva de lei quanto às excepções à inamovibilidade ou estabilidade como também a exigência de uma justificação adequada para essas excepções.
O paralelismo dos magistrados do MP em relação aos juízes, estabelecido estatutariamente, tem um significado e alcance precisos:

É estabelecido segundo os vários escalões hierárquicos: o procurador-geral da República tem categoria, tratamento e honras iguais aos do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e usa o trajo profissional que compete aos juízes conselheiros; o vice-procurador-geral da República tem categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e usa o trajo profissional que a estes compete; os procuradores-gerais adjuntos têm categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes de Relação e usam o mesmo trajo profissional; os procuradores da República e os delegados do procurador da República têm categoria, tratamento e honras iguais aos dos juízes dos tribunais junto dos quais exercem funções e usam o trajo profissional que a estes compete. “

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O poder dos juízes

As questões recentes de uma pretendida divisão das magistaturas ( judicial e MP) , e uma eventual funcionalização do ministério público, ligam-se aos poderes do Estado e à sua divisão e distribuição.

As doutrinas de divisão dos poderes distinguem os mais importantes âmbitos funcionais do Estado e as competências com ele relacionadas, exigindo a criação de órgãos próprios para cada um destes âmbitos funcionais. Cada um destes órgãos deve limitar-se, por princípio, à função que lhe é atribuída”. (…) O que interessa em último termo é impedir a concentração de poder nas mãos de uma e só pessoa” (…) “A tarefa típica da jurisdição é a função de garantia do direito. A jurisdição, diz, em nome da própria realização do direito, o que é justo”. “Nas democracia ocidentais, a divisão de poderes é considerada como um princípio fundamental, mas não é concretizada rigorosamente de acordo com o seu modelo de tipo ideal. Em geral, só é estritamente observada a independência dos juízes face a intromissões do executivo.(…) Em estados parlamentares, o governo e a administração não estão de modo algum, livres da intervenção do poder legislativo(…) o partido político mais forte, forma governo e a maioria no parlamento, dominando ambos os órgãos. Esta apropriação partidária do governo e da maioria parlamentar conduziu a que, facticamente, o controlo parlamentar tenha passado em larga medida para a oposição.” “O poder judicial participa, através da interpretação do texto da lei e da integração de lacunas legais no processo de tornar mais preciso e completo o direito legislado. As interpretações e o desenvolvimento do direito aberto podem, sob a forma de jurisprudência constante, consolidar-se ao ponto de alcançarem uma possibilidade de execução fáctica equivalente a uma interpretação legal ou a uma outra qualquer norma legal.” -Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, 1997, 3ª edição da Gulbenkian.


Assentes na noção de que o poder judicial é um dos poderes do Estado, em equação com os demais e com um perfil que realça a função de garantia do direito, importa saber em que consiste este poder judicial e quais as características exigíveis à respectiva função.

A independência, será talvez a mais importante. E porquê? Naturalmente por causa da necessidade de conservar uma estrita imparcialidade e uma terciariedade na apreciação e julgamento dos casos concretos. Mas também compaginada com a possibilidade de os juízes poderem ser nomeados por concurso ( e não por eleição), assumirem a posição de funcionários do Estado, capazes de serem gestores de uma função que é pública e que desenvolvem de modo vinculado e sem estarem ainda assim sujeitos a qualquer controlo de mérito nas decisões. Estas noções, são aliás as que resultam do sistema judicial italiano, tendo sido respigadas do sítio do Conselho Superior da Magistratura daquele país.

Esse mesmo Conselho, acolhe os magistrados ditos “ordinários”, os que se acolhem sob a organização do referido Conselho e que abrange a jurisdição penal, promovida pelo ministério público e ainda a civil que abarca os direitos inerentes a relações entre privados ou entre estes e a administração pública.

O sector da jurisdição penal, parte da promoção dos magistrados do ministério público, também eles pertencentes à magistratura ordinária e ao referido Conselho Superior que é único.

Alguém duvida da independência, qualidade, isenção e imparcialidade da magistratura italiana? Acaso houve outro país na Europa, onde foi possível substituir toda uma classe política profundamente corrupta, por efeito de um processo que tomou o nome prosaico de “Mãos Limpas”? Acaso alguém colocou em dúvida a isenção, imparcialidade, independência e autonomia dos magistrados que o instruíram, do ministério público italiano e a dos juízes que depois o julgaram?

Porque é que em Portugal as coisas são diferentes e se assiste actualmente a uma clara ofensiva do poder político contra o poder judicial, com as últimas manifestações, reflectidas numa lei que pretende de algum modo assimilar os magistrados ao funcionalismo público comum?

Principalmente, por que razão especial, continua a haver muitos juízes que se sentem mal acompanhados na respectiva e específica função de julgar, tendo a magistratura do ministério público, estatutaria e profissionalmente, em paralelo?

Como é que se chegou aqui, a este ponto de viragem na estruturação das magistraturas?

O constitucionalista Vital Moreira, em artigo no Público, acaba de desdizer o que escreveu em 1993, ao considerar o Ministério Público, como a segunda componente, pessoal, dos tribunais. Acha agora, que não é assim e que afinal o ministério público pode muito bem integrar-se na função pública mais corrente e comum, ao contrário dos juízes a quem concede quase como que um privilégio de separação.

Como é que o poder político pode interferir mesmo indirectamente, na função judicial que se quer independente. Por vários modos, sendo três deles destacados pela magistratura italiana:

Pela limitação do direito de acção em juízo; pela pressão externa sobre a magistratura e ainda pela criação de juízes especiais.

Estará Portugal a atravessar um período de crise com esse recorte?

Alguns sinais indicam que assim pode suceder. A desjudicialização de alguns assuntos corrente e tidos como comezinhos, a pressão exercida pelo constante confronto com a magistratura, a quem se apontam privilégios imerecidos e que apesar de nem destoarem dos concedidos aos políticos em geral, fazem eco na opinião pública, através da amplificação que recebem dos núncios e malabaristas habituais e ainda a criação de várias instâncias de mediação e a tentativa de controlar o acesso a tribunais superiores com a abertura de lugares a não magistrados de carreira.

Neste contexto que sentido faz, distinguir o ministério público, colocando-o num lugar mais consentâneo com os interesses da Administração política do Estado, retirando-lhe a autonomia que até agora tem sido constitucionalmente assegurada?

A primeira tentativa para tal efeito que se torna evidente, é a mudança no respectivo estatuto, no sentido de lhe retirar o paralelismo com a nagistratura judicial, sob pretextos anunciados: não participarem os magistrados do MP, do exercício do poder judicial. Pergunta-se: na Itália, participam? E isso traz algum problema de divisão de poderes do Estado?

Ou o contrário, com a separação das magistraturas, cortando-se o paralelismo constitui apenas um primeiro passo, para um mais efectivo e real controlo, do poder judicial no seu todo, atenuando o princípio saudavelmente democrático da divisão das funções e poderes do Estado?